Um Jogo?
Um Seriado?
Uma Mentoria?
A função da arte em nossa vida é inspirar, informar, estimular a imaginação ou simplesmente cumprir o papel mais simples de passatempo.
Penso que é perda de tempo não aproveitar a possibilidade de transformar o lazer, o prazer de assistir um bom filme em algo útil para a vida e para o próprio amadurecimento.
Se até filmes ruins trazem ensinamentos, com o “Gambito da Rainha” estamos diante de uma obra prima que vai muito além do óbvio e que nos remete a diversas reflexões a partir da metáfora do Jogo de Xadrez.
Se existem frustrações em minha vida, uma delas é não ter aprendido a jogar xadrez, fato esse amenizado pela informação de que após o sucesso estrondoso do seriado da Netiflix, a busca por “como jogar xadrez” no google atingiu seu maior patamar dos últimos nove anos e no site de compras eBay, as buscas por tabuleiros de xadrez subiram 250%.
Penso que essa busca se deve muito pela curiosidade e necessidade de aprendermos mais desse jogo de estratégias para melhor entendermos nossa própria vida e a infinidade de cruzamentos e conexões possíveis.
Entender como as peças se movimentam é essencial para jogar, a partir daí, uma infinidade de possibilidades se abre para o jogador hábil. Como na vida, quanto mais se joga, mais se aprende. Quanto mais se ganha, mais se gosta do jogo. Quando pensamos que sabemos tudo e que somos imbatíveis, sofremos as derrotas que longe de serem fracassos, nos impulsionam para os aprendizados mais importantes.
A derrota carrega lições que a vitória é incapaz de proporcionar.
Feliz de quem erra, perde, é derrotado e aprenda com seu fracasso, porque nesse caso ele é momentâneo e pedagógico.
Quando nos acostumamos às vitórias surgem sentimentos como arrogância, orgulho, vaidade, prepotência, autoconfiança que podem ser estrategicamente equalizados por uma “derrapada” sútil ou avassaladora que se encarregará de revelar a face mais cruel da realidade: “nada é perene”.
Trata-se de uma Lei Universal, a Lei da Impermanência muito conhecida dos praticantes do Budismo, segundo a qual:
“Nada é permanente, a não ser a própria impermanência das coisas.”
Ao experimentar sua primeira derrota no jogo, a protagonista vê sua confiança abalada e na busca de ajuda para melhorar sua performance vem o crescimento, o amadurecimento necessário para tornar-se uma grande campeã num ambiente totalmente dominado por homens, num jogo de tradição russa em que quanto mais velho, mais se sabe.
Ela quebra todos os paradigmas, supera e surpreende a todos com inteligência, sagacidade, determinação e com a dose de humildade que precisava para seguir aprendendo e se aperfeiçoando. A lição estava aprendida, por mais que sejamos ótimos em determinado ofício, sempre podemos ser superados por alguém melhor, que se considera imbatível.
Nesse exato cruzamento da vaidade controlada com a falta de humildade alheia, do inesperado criativo com o clássico conservador, do modelo de aprendizado feminino compartilhado com a individualidade masculina clássica é que Beth Harmon sela sua vitória final e garante sua supremacia absoluta contra o grande campeão russo, mas também contra seus medos, seus vícios, suas inseguranças, sua solidão. Tudo o que poderia representar um abismo se transforma em redenção.
Para cada espectador sobressai algum aspecto específico da série. Para mim o destaque fica por conta da combinação articulada do compartilhamento de conhecimento na busca de solução para um problema, um enigma simbolizado na metáfora dos diferentes métodos de se jogar xadrez. A união de diversos talentos que ao reconhecerem em Beth Harmon a expressão máxima do sonho da vitória americana em confronto direto com a superioridade russa no jogo fez toda a diferença.
Cada um renunciou à sua vaidade individual em benefício de uma vaidade coletiva nacionalista e no quanto o simbolismo da vitória reverteria em ganho para futuras gerações de jogadores e jogadoras de xadrez. Beth Harmon representava para as mulheres não somente a vencedora de um campeonato internacional de xadrez, mas a certeza de que existe um universo inexplorado de vitórias femininas a serem conquistadas, inclusive aquelas para as quais não lhes foi concedida autorização explícita. O Gambito da Rainha evidencia que não existem barreiras intransponíveis para quem é apaixonada e obstinada por seus sonhos.
Se você assim como eu ainda não aprendeu esse jogo fantástico, não se preocupe, independentemente da idade, ainda há tempo para aprender e se tornar uma campeã nos torneios da vida.