Estacionei o carro e o cuidador se aproximou de mim, como sempre, a bater aquele papo de bairro. Me contou que não assiste mais as questões das enchentes, porque lhe faz muito mal. Quando comentei que não só assisto, mas que estou desde o início ajudando, ele me fez uma pergunta que tive que pensar para responder: “como é que consegues?”.
Um mês da maior tragédia no Rio Grande do Sul e ainda não tinha parado para pensar nisso.
“Sou forte. Muito forte.”, respondi.
Voltando para casa fiquei pensando no que me levou a ser forte e resiliente. De alguma maneira me sinto privilegiada por ter sido criada assim e ter tido as ferramentas e situações para desenvolver força física, inteligência emocional e a capacidade para mudar e me adaptar a todo tipo de situação. Tanto que fiz disso minha profissão.
Mas não é sobre minha história que escrevo, mas sobre todos os que não possuem a capacidade, a sorte quiçá, de poder lidar com a perda, com a mudança radical e com o desapego.
A perda dos objetos tem sido o maior impacto nesta tragédia rio-grandense. Porque?
Os objetos, desde cedo, mediam nossa relação com o mundo, assumindo o lugar de conforto, segurança e afeto.
Para a antropologia seria quase impossível entender qualquer forma de vida social e cultural sem considerar a função dos objetos, das coisas.
Crescemos aprendendo a sonhar objetos. Podem ser pequenas ou grandes coisas. Somos movidos por isso. E assim vamos construindo nossa existência e ancorando nossa subjetividade nos objetos. Eles são a extensão do nosso corpo, mediação e interpretação da vida social. Atribuímos significado ao inanimado e perder um objeto é perder uma parte de si.
O “ter” tem substituído o “ser” há muito tempo atrás e como sociedade aos poucos estamos começando a valorizar a importância da nossa individualidade e essência. Porém, ainda compramos o curso de meditação, pagamos a nutricionista e vamos de carro à academia. Ainda são atitudes externas, objetos, coisas que pagamos para ter alguma coisa.
É verdade que não podemos simplesmente agradecer à vida, quando perdemos nossa casa. Nosso todo. Mas também, muitos de nós temos a obrigação de nos questionar este estilo de vida que tem nos levado ao apego desenfreado pelo consumo, pela acumulação e pela falta de desenvolvimento do nosso “ser”.
O voltar para casa e o trabalho tem que ser conduzido com a reflexão da necessidade de mudança de paradigma. Porque se não o fizermos, iremos sofrer novamente e cada vez mais.
O planeta mudou. Somos abduzidos pelos celulares, as mídias e fake news, o que torna tudo ainda mais difícil. No entanto, não há mais espaço para negar a realidade se queremos uma nova vida feliz.
Estamos perante a reconstrução e volta para nossas casas. É agora o momento de mudar e ajudar na condução da nova vida.
Excelente reflexão. Ótimo artigo.
Penso que não podemos esquecer do valor emocional associado a uma casa, a um album de retratos, etc. Difícil questionar o sofrimento alheio frente a perda de objetos sim, mas que fizeram parte de boa parte da existência da pessoa, as vezes por mais de uma geração, visto que não vivemos todas as histórias associadas a esses ‘objetos’.