Os movimentos de descentralização, provocados pelo fenômeno das criptomoedas, trazem consigo não apenas tecnologias para processamento de dados, mas também uma provocação sobre quais novas formas de gestão podemos colocar em prática. A pergunta que surge é: tem como fazer gestão de forma descentralizada?
Muitos leitores, assim como eu, desenvolveram suas carreiras em ambientes corporativos nos quais nos acostumamos com expressões como “cachorro com dois donos morre de fome”, “um manda e os outros obedecem”, entre tantas outras. Essas frases criam em nossas mentes um entendimento de que temos algumas pessoas que pensam e outras que simplesmente executam o que lhes foi ordenado.
Naturalmente, como seres racionais que somos, várias situações chamam a atenção das equipes – que estão ali apenas para executar – e alertam para possíveis problemas ou oportunidades nas quais a empresa deveria agir, mas nem sempre encontram espaço para se manifestar e contribuir. A “caixinha de sugestões” é pouco para as visões e ambições de quem se conecta diariamente com o coração dos nossos negócios.
Reinventando as Organizações
Frederic Laloux, em seu livro “Reinventando as Organizações”, traz uma leitura histórica sobre como as empresas, através do tempo, foram buscando novas formas de desenvolver o trabalho em equipe. O autor organiza os modelos por cores, indo do âmbar ao turquesa, concatenando práticas de gestão como a meritocracia, os modelos de accountability, organogramas, empoderamento, até chegar a modelos mais descentralizados de autogestão.
Os modelos descentralizados estão mais alinhados a uma horizontalidade na gestão, em contraponto ao modelo tradicional mais vertical, em que nos acostumamos com uma hierarquia de pessoas em cargos, do presidente ao estagiário, passando por diversos cargos de gestão média, em que uma pessoa é responsável pelo trabalho de várias outras. Na horizontalidade, há pouca ou nenhuma hierarquia de pessoas, mas sim uma hierarquia de propósitos, nos quais as pessoas se encaixam de acordo com suas competências e habilidades.
Nesse contexto, surgem modelos como a Holacracia, Sociocracia e o brazuca Organizações Orgânicas (O2). O que esses modelos trazem de comum é a organização das pessoas em torno de papéis e não de cargos. Papéis visam ser mais dinâmicos ao contexto atual do mercado e das empresas, trazendo mais flexibilidade para movimentar as pessoas. Por exemplo: em um modelo horizontal, a empresa pode criar um papel que visa atender uma demanda pontual de uma campanha; o papel vai existir por um tempo (assim como todos os papéis são), ter suas responsabilidades e ser energizado (executado) por uma ou mais pessoas dentro da estrutura da empresa.
Em uma análise superficial, pode parecer que criar um papel em uma estrutura horizontal ou um cargo em uma empresa mais vertical é a mesma coisa. A principal diferença é que, em modelos mais tradicionais, quando se cria um novo cargo, várias questões precisam ser respondidas, como: para quem irá responder esse cargo? Quais os requisitos para a vaga? Será uma contratação interna ou externa? É júnior, pleno ou sênior? E muitas mais! Enquanto isso, no modelo horizontal – tomando o O2 como base – o papel já nasce dentro de um círculo; pessoas podem se candidatar e ser indicadas para esse papel, sem necessariamente terem que deixar outros papéis que já desempenham dentro da instituição.
Na teoria é lindo, mas e na prática?
De fato, colocar um modelo de gestão horizontal em prática é um desafio muito grande. Isso ocorre por muitos motivos, que passam pela cultura da empresa, pelo perfil da equipe, e pela forma como uma mudança como essa é conduzida. Por vezes, mudanças como essa partem de uma decisão centralizada e não necessariamente encontram apoio nos demais membros da empresa, o que pode tornar essa uma missão suicida.
Por outro lado, temos diversos exemplos de empresas que buscaram esse caminho e estão conseguindo colher benefícios dessa mudança. Podemos falar aqui da fábrica de molho de tomates Morning Star, que se tornou um dos símbolos da gestão horizontal no mundo todo, mas também podemos falar da brasileira Mercur e da Aldeia da Fraternidade, que, como organização do terceiro setor, está adotando o O2 para seus quase 100 colaboradores. É algo muito significativo!
No caso da Aldeia da Fraternidade, projeto que eu conheço bem de perto, sei que existe um trabalho emocional realizado há muitos anos com as lideranças, o que cria um contexto favorável para uma mudança de trabalho para autogestão, pois assim os colaboradores já possuem um repertório de ferramentas socioemocionais maior para lidar com questões da dinâmica de poder que são comuns nas organizações.
Na prática, em uma estrutura horizontal, a dinâmica de poder é mais circunstancial e dinâmica, e não fixa, como nos modelos mais tradicionais. Fixa, nesse caso, quer dizer que o poder de decisão é dado para um grupo de pessoas e geralmente só muda em caso de trocas no corpo executivo. Já a liderança circunstancial se dá por iniciativa de qualquer membro do time que, dentro do seu campo de atuação, tem autonomia para identificar, planejar e executar ações sem precisar “pedir permissão” para alguma autoridade. Isso visa dar mais capacidade de resposta e autonomia ao time.
A governança distribuída na nova economia
Quando falamos de blockchain e uma nova economia, por vezes o termo descentralização aparece. O uso desse termo muitas vezes se refere ao fato de que a infraestrutura de processamento das transações passa a ser descentralizada, distribuída globalmente, em que praticamente qualquer indivíduo ou instituição pode participar. Mas não é apenas sobre isso, mas também sobre a construção de uma economia mais colaborativa e sustentável, acessível a um público que hoje está à margem da economia global, por vezes até chamado de “desbancarizado”.
Para além do impacto financeiro que as criptomoedas geram, o movimento cripto/blockchain também se vale da formação de mecanismos de governança descentralizada, para que esses atores possam, de maneira coordenada e orgânica, adaptar seus processos à evolução natural do ecossistema. E dentro desse contexto surgiram as chamadas Organizações Descentralizadas e Autônomas, ou simplesmente DAOs.
Muitas DAOs atualmente são responsáveis pela governança de grandes projetos do mundo cripto, das finanças descentralizadas (DeFi) às regenerativas (ReFi), passando pelos ativos do mundo real (RWA) tokenizados. Esses modelos de governança permitem que os portadores de tokens discutam questões-chave da gestão, incluindo a destinação de recursos e a definição de prioridades técnicas.
O modelo das DAOs é mais um exemplo de gestão horizontal, em que a capacidade de resposta às demandas tende a ser mais rápida e orgânica. Ele desafia não só a economia tradicional mas também os modelos de gestão tradicionais, mostrando que existem outras vias que buscam alinhar os propósitos individuais com os coletivos, pautadas pela capacidade de realização de cada um.
Na empresa em que tenho a oportunidade de ser um dos sócios, vivemos muito dessa nova economia, seus desafios e oportunidades, e digo que me sinto muito interessado e motivado em ver cada vez mais os resultados desses novos modelos sendo postos em prática na nossa realidade. Vamos juntos?