Imagine você, caro leitor, se envolver em uma polêmica sobre questão pública delicada, a envolver bons argumentos a partir de múltiplos ângulos de análise. Aí, determinada personalidade pinça parte de sua argumentação, descontextualiza-a totalmente e lança nas redes sociais como isca para atrair os tubarões do ódio e das ofensas em série.
Em questão de instantes, você – que, até então, gozava de uma vida limpa, tranquila e de reputação ilibada – passa a ser vítima de ataques virulentos contra sua honra pessoal e dignidade profissional, despertando a fúria de manadas destrutivas, catapultadas pelos algoritmos de trends irracionais que fazem a fortuna dos barões das plataformas digitais. Quando o caos já parece definitivamente instalado, vem o último golpe: sua família começa a ser ameaçada e seus filhos, apavorados, não querem mais ir à escola.
Infelizmente, a ficção ganha tintas de realidade, sendo o exemplo acima uma possibilidade latente em nossas vidas. Caso venha a acontecer, nosso natural espírito de justiça leva a supor a existência de meios hábeis a conter os danos e a irracionalidade descontrolada. Sim, existem mecanismos de contenção. O problema é o descompasso de perspectivas: enquanto a destruição reputacional voa na velocidade da luz, os instrumentos de reação andam sobre carroças.
Por exemplo, vejam a atual posição dos Tribunais quanto ao procedimento de reparação de danos e exclusão de mensagens ofensivas: “Necessidade de indicação clara e específica do localizador URL do conteúdo infringente para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet. O fornecimento do URL é obrigação do requerente. Precedentes deste STJ.” (DJe 29/11/2017).
Fugindo do juridiquês, o que isso significa?
Significa que cabe à pessoa ofendida indicar, um a um, os endereços eletrônicos das respectivas mensagens ofensivas, pois pedidos genéricos, sem indicação precisa das URL´s, não são acolhidos. Agora, imaginem que as mensagens de ódio sejam aos milhões, o que fazer? Simplesmente não há o que fazer porque é impossível aos mortais elencar, por suas próprias forças, milhões de endereços eletrônicos em uma petição judicial. E não adianta pedir ajuda para as redes sociais; elas simplesmente lavam as mãos, dizendo que (i) não têm condições técnicas de fazer esse controle e (ii) que não podem censurar as páginas de seus usuários. Ou seja, as balizas de uma ordem jurídica justa estão completamente invertidas: o ofensor pode tudo, e o ofendido que se vire em provar sua inocência e seu bom nome, em um sistema judicial lerdo, moroso e solene.
Sem cortinas, estamos diante de um debate constitucional de profunda densidade normativa, a envolver, entre outras matérias conexas, os limites da liberdade de expressão, os direitos da privacidade e intimidade, a natureza jurídica das redes sociais (se plataformas de tecnologia, empresas de mídia ou publishers), e o dever de efetiva reparação de danos. Não duvido que, pelos altos interesse em jogo, esse seja o litígio deste século. Se, na atual circunstância, ainda não é possível dizer quem vai ganhar, é cabível afirmar que, como está, é o cidadão inocente e de boa-fé que está perdendo de lavada.
Ora, quem ganha fortunas usando traços materiais e imateriais de fontes pessoais, deve ter o dever legal proteger os usuários e cidadãos de condutas ilícitas, abusivas e ofensivas nas plataformas digitais. Logo, não dá mais para as redes fazerem de contas que não é com elas. Aliás, quem quer ser grande e realmente ditar o futuro do mundo deve ter a dignidade de assumir, sem fugas infantis, os imperativos de sua autoridade institucional. Por tudo, a sociabilidade é uma condição da civilização. E só há civilização com capacidade de entendimento. Não basta, portanto, ser social no nome e antissocial, na prática. O que é, é. Independentemente, do que pensamos ser.
Muito bem desenvolvido.
Belo artigo Ventura
Excelente e oportuno artigo Sebastião !