Há, no Brasil, uma forte tendência de criminalizar os fatos da vida. Tudo que soa reprovável parece exigir algum tipo de sanção penal. Da homofobia à simples inadimplência fiscal, criam-se selos de reprimenda criminal. Embora a impulsividade da emoção possa sugerir a penalização como forma de repressão máxima a condutas indevidas, existem sinuosidades que confrontam a lógica linear. Isso porque a tarja criminal é uma forma de elevação dos custos de transação da lei, dificultando, assim, sua eficácia final plena.
A realidade brasileira é exemplificativa em suas evidências. Vivemos em um zoológico de corrupção, mas, apesar de toda nossa fauna de gatunos, poucos acabam condenados. Ou seja, o processo penal é de difícil conclusão eficaz, pois extremamente formal e sujeito a nulidades de toda ordem.
Ciente dessas agudas dificuldades estruturais, o pragmatismo americano desenvolveu os chamados “plea bargain”, incorporados, com adaptações, ao direito brasileiro pela lei da colaboração premiada. Sem cortinas, o aspecto pragmático do “plea bargain” é uma resposta ao redemoinho de complexidades de uma estática processualidade arcaica que redunda em gordos benefícios à impunidade festiva.
Ora, a atual criminalização da vida é uma forma de banalização do direito penal, criando uma cortina de fumaça sobre as ineficiências punitivas do Estado. Em termos absolutos, deveríamos usar a alavanca criminal de forma estratégica, dissuadindo delitos graves e organismos delitivos perigosos que justifiquem o alto custo de aplicação da lei penal. Do jeito que está, temos infinitos crimes no Brasil, mas raríssimas punições eficazes. Moral da história: de nada adianta criminalizar, se a lei for feita para não ser aplicada.
Adicionalmente, a criminalização desmedida traz consigo um problema institucional seríssimo: coloca a liberdade do cidadão à mercê de um sem número de possibilidades acusatórias. E não existe nada mais danoso ao espírito de justiça, do que a arbitrariedade sobre aquilo nos torna livres.
Sim, o Estado pode muito, mas não pode tudo. É preciso colocar freios no ímpeto punitivo estatal, pois o poder em demasia é o berço da injustiça absoluta.
Dando eco a sua histórica tradição de elevação das liberdades constitucionais, a doutrina americana há muito discute os limites e possibilidades da justa aplicação da sanção criminal. Vejam que, em 1980, o grande Richard Posner escreveu propositivo artigo científico na American Criminal Law Review, defendendo que um pesado sancionamento pecuniário seria preferível ao encarceramento, especialmente em crimes de natureza econômica. Por sua vez, em 1992, o professor Kenneth Mann escreveu artigo seminal no Yale Law Journal, propugnando um crescente e substantivo uso de punições monetárias em substituição à medieval solução do cárcere.
O tema é naturalmente polêmico, especialmente em países com criminalidade tão crua e acesa como o Brasil. Mas, se realmente queremos ser um país melhor, não podemos fugir do debate sobre assuntos delicados que repercutem diariamente em nossas vidas. Em tempo, será a efetiva capacidade de enfrentarmos e resolvermos problemas sensíveis que nos habilitará a viver em uma institucionalidade mais alta, digna e decente. E tal nível de institucionalidade republicana exige, sem sombra de dúvidas, a supremacia da justiça sobre o crime.
Aqui chegando, exsurge a evidência de que apenas inchar o Código Penal não é a melhor solução de combate à criminalidade reinante. Aliás, a turma de crimes sofisticados sofre muito mais com sanções patrimoniais de monta do que com apenas alguns anos de sol nascendo quadrado. Não sejamos ingênuos; a possibilidade de prisão é uma variável nos cálculos daqueles que decidem enriquecer ilicitamente. Logo, o eficaz desbaratamento das modernas organizações criminosas pressupõe uma necessária releitura e ajuste do foco punitivo estatal. Afinal, criminalizar tudo pode ser o início do fazer da liberdade, um nada.
Excelente! Muito crime e pouca pena.