Será que a conectividade instantânea das redes sociais está nos fazendo política e humanamente melhores? Estaremos a adquirir maior capacidade de ouvir uns aos outros, compreendendo diferenças, expondo opiniões pessoais com cordialidade dentro de um ambiente favorável ao entendimento e, ato contínuo, a consensos civilizatórios mínimos?
Ou será que a conectividade nos tem tornado impacientes, agressivos, intolerantes e autoritários? Embora nominalmente “sociais”, serão as redes e plataformas tecnológicas materialmente “antissociais”? E, fundamentalmente, será possível realizar a 06/08/2022 09:19 Página 1 de 5 democracia entre hostilidades estúpidas e ofensas frenéticas entre grupos que se pensam donos da verdade?
As perguntas acima revelam importante paradoxo da contemporaneidade: a tecnologia revolucionou o mundo da comunicação e, ao mesmo tempo, involucionou nossa capacidade de compreensão das diferenças humanas. Sim, tudo está muito rápido, acessível e prático. O problema é que a vida vivida é complexa, exige reflexão superior e ações pautadas pelo imperativo da razão pensante, à luz da ética da responsabilidade.
Objetivamente, o impressionante processo de aceleração da realidade nos faz passar batido por sutis aspectos vivenciais de alta relevância. No redemoinho dos dias, não mais dispomos de tempo para detalhes, particularidades ou circunstâncias singulares; a pressa afoga o pensamento crítico superior. No sofisticado processo tecnológico de massificação cognitiva, estamos sendo gradualmente reduzidos a modelos de escolhas “all or nothing”, estimulando a platitude de polaridades rasas e suas tacanhas lógicas binárias, incompatíveis a problemas complexos da realidade posta.
No severo inverno do pensamento crítico e da cultura superior, a 06/08/2022 09:19 Página 2 de 5 erosão qualitativa das instituições democráticas atinge níveis preocupantes, estando direta ou indiretamente correlacionada a novas formas de comunicação social. Ora, sendo uma genuína experiência humana, a democracia é naturalmente imperfeita, mas absolutamente possível em suas manifestações virtuosas. Logo, quanto mais alto o humanismo cívico, maior será a qualidade das instituições políticas; todavia, quanto pior o caráter das manifestações humanas, mais fundo será o buraco da decadência democrática.
Em recente artigo na revista The Atlantic (edição de maio de 2022), a inteligência crítica de Jonathan Haidt fez primorosa análise dos efeitos nocivos das mídias sociais sobre as instituições democráticas, advertindo que as redes sociais acabaram por conceder poder aos agitadores e provocadores enquanto silenciaram os bons cidadãos, esvaziando o papel estrutural do dissenso político na democracia; entre irracionais manadas furiosas, que tratam os eventuais divergentes como inimigos radicais, “se não fizermos grandes mudanças em breve, nossas instituições, nosso sistema político e nossa sociedade poderão entrar em colapso durante a próxima grande guerra, pandemia, flagelo financeiro ou crise constitucional”.
O problema está em como conter os efeitos deletérios da tecnologia sobre o humanismo virtuoso, sem a imposição de restrições desmedidas ao espírito criativo e empreendedor do livre mercado. Se não podemos censurar a liberdade de expressão individual, as redes sociais também não podem ser um território de ninguém, alheio ao imperativo da responsabilidade. Sobre o ponto, já decidiu a colenda Suprema Corte que o direito à livre expressão do pensamento “não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. Os abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, quando 06/08/2022 09:19 Página 3 de 5 praticados, legitimarão, sempre a posteriori, a reação estatal aos excessos cometidos, expondo aqueles que os praticarem a sanções jurídicas, de caráter civil ou, até mesmo, de índole penal” (2ª Turma, relator ministro Celso de Mello, j. 15.09.2015).
Prosseguindo na rota jurisprudencial, o STF estabeleceu que a “proteção da liberdade de expressão e de imprensa nos termos da Constituição não admite seja afetado, direta ou indiretamente, o legítimo direito de crítica em matérias jornalísticas e postagens, compartilhamentos ou outras manifestações (inclusive pessoais) na internet, feitas anonimamente ou não, desde que não integrem esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais” (Pleno, j. 24.08.2020). Ou seja, quando a liberdade de expressão individual é impulsionada por práticas de expansão digital da informação, abre-se a janela para eventual controle jurisdicional a posteriori com vistas a analisar a licitude do procedimento instalado e consequente sanção, se for o caso, de condutas comprovadamente ilícitas, respeitado o devido processo legal.
É fundamental aqui ressaltar que, na democracia, não há censura prévia. No julgamento da ADIN 4451/DF, o Supremo ditou a orientação constitucional no sentido de que “a Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada”, expressando que a “livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva”; ao final, externou-se que o “direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, 06/08/2022 09:19 Página 4 de 5 satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional” (Pleno, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 21.06.2018).
Diante das redes sociais e das novas mídias digitais – que abrem o flanco para discursos violentos e de ódio sem filtro editorial competente –, reinaugura-se o dinâmico debate constitucional sobre importantes hard cases constitucionais que antes de apriorísticas respostas categóricas, exigem a prudência do pensamento crítico superior, a análise de evidências objetivas, livres de vieses subjetivos que comprometam o rigor hermenêutico, e a sensibilidade sensorial para bem compreender as condições e possibilidades da circunstância histórica, à luz de um constitucionalismo ético, virtuoso e realizador de valores humanos fundamentais. De tudo, resta a firme certeza de que a justa ponderação constitucional exige equilíbrio e bom senso, pois não será trocando ofensas que resolveremos os fundos desafios da contemporaneidade.
Parabéns Ventura