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Deveríamos aceitar melhor que não sabemos tudo.

Origem etimológica: do inglês ‘ultracrepidarian’, da locução latina ‘ne sutor, ultra crepidam’ ou ‘não vás, sapateiro, além das sandálias’.

Na Grécia Antiga, o pintor Apeles tinha o hábito de expor suas obras na entrada de seu ateliê para observar as reações dos transeuntes. Certo dia, um sapateiro parou para apreciar os quadros e deteve-se analisando minuciosamente o pé de uma das figuras retratadas. Ao questionar o que chamava tanto a sua atenção, o sapateiro explicou que o desenho da fivela da sandália estava incorreto: “um sapateiro nunca colocaria a costura de uma sandália nessa posição, é impossível”, e explicou como a costura deveria ser. Apeles agradeceu pela observação e rapidamente fez os ajustes na pintura para corrigir o erro. No dia seguinte, estimulado por ver que sua sugestão havia sido considerada, o sapateiro fez uma nova crítica à obra, dessa vez emitindo sua opinião sobre o movimento da mão da personagem retratada. Nesse momento, Apeles o interrompeu, dizendo: “Não vás, sapateiro, além das sandálias!”.

Este episódio foi narrado pelo filósofo Plínio, o Velho, por volta do ano 35 d.C. Passados cerca de 2 mil anos, o (mau) hábito de dar opiniões arbitrárias sobre assuntos que se desconhece, ou se conhece pouco, nunca esteve tão em voga.

Atuo com design de experiência para produtos digitais desde 1996. Acredito que minha empresa seja a primeira a trabalhar em UX e UI no Brasil, bem antes de esses termos se popularizarem na área de tecnologia. Da mesma forma que Apeles, temos total domínio de nosso ofício, e ainda assim temos como prática ouvir constantemente os usuários a fim de aprimorar as interfaces e gerar produtos digitais cada vez melhores, mais simples e encantadores.

Pois relembrei o relato de Plínio em uma recente reunião de trabalho. Estávamos em um grupo relativamente grande, cerca de 10 pessoas, com a missão de apresentar um projeto extenso em um curto espaço de tempo. Enquanto procurávamos ser objetivos ao máximo no assunto em questão, éramos constantemente interrompidos por uma pessoa cuja área de atuação era diferente da nossa, explicando-nos o que deveríamos ou não fazer. Ao mesmo tempo em que tentávamos retomar o foco, o termo ultracrepidário vinha constantemente à minha mente. Como resultado das interrupções, além do desnecessário desconforto causado em todo o grupo, não foi possível vencer a pauta. Tivemos que agendar uma nova reunião, impactando o tempo de todos e o prazo geral do projeto.

O incidente ocorrido foi evocado por ser um exemplo prático de um ultracrepidário em ação. Com entendimento parcial no assunto, apropriou-se de seu restrito repertório adquirido a partir de referências em meios indiretos e sentiu-se à vontade para tomar conta da reunião, à revelia dos demais, causando prejuízos à finalidade do encontro. Após esse fato, resolvi escrever este artigo como um convite à reflexão sobre o assunto. Acredito que todo ser humano é especialista em algo. Em contrapartida, é também um generalista para todo o resto. Faz parte da equação. Poucos são os que conseguem especializar-se em assuntos distintos. A grande maioria de nós detém conhecimento aprofundado em alguma área específica. E, enquanto estamos contribuindo por meio da nossa especialidade, deveríamos, por outro lado, aceitar nossas limitações. Mas a constante pressão por performance no mundo corporativo nos induz a não admitir que não sabemos tudo. Com isso, acabamos todos nos tornando ultracrepidários involuntários, verdadeiras metralhadoras de opiniões ocas e desnecessárias.

Podemos ir além do episódio relatado e traçar paralelos com as mais diversas áreas de atuação. Creio que em todas elas aconteça o mesmo fenômeno. As redes sociais potencializaram a multiplicação exponencial dos ultracrepidários. Atualmente são milhares, talvez milhões, de especialistas-generalistas. É uma verdadeira legião de disseminadores de conteúdos rasos, superficiais, quando não totalmente equivocados. Mas suas afirmações são pronunciadas com tanta veemência e propriedade que a essência do que é verdadeiro se camufla. Só quem é realmente autoridade no assunto em questão se dá conta dos erros. A grande maioria apenas acredita, segue e compartilha, contribuindo para a perpetuação desse ciclo vicioso.

A forma como a história foi descrita por Plínio sugere que Apeles poderia ter sido mais gentil em sua resposta. Acredito que o sapateiro agiu muito mais por impulso do que por desrespeito ao artista. Mas o fato é que ele acreditou que estaria contribuindo, sem se dar conta de que o especialista para aquele assunto já não era mais ele. Por isso, não aconselho que passemos a ser rudes com os ultracrepidários. Eles desconhecem que desconhecem. Talvez o melhor caminho seja olharmos mais para dentro de nós mesmos e fazermos vir à tona todo o nosso real e fundamentado conhecimento. Este, sim, será construtivo e muito apreciado. Encontre sua verdadeira potência e brilhe. Que ultracrepidários sejam os outros.

3 Comentários

  • Osni Tadeu dos Santos disse:

    Um bom excelente texto. Muito atual e escrito de uma forma muito clara e objetiva

    • Letícia Polydoro disse:

      Fico feliz em saber que você tenha gostado, Osni! Importante estarmos atentos ao fenômeno dos ‘ultracrepidários’ para tentar neutralizá-los 😉

  • Muito boas considerações, Letícia. São inúmeros os “especialistas” com graduação no Google e pós no ChatGPT.

    Abraço!

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Letícia Polydoro

Diretora da Hypervisual Design de Interação, possui formação em Publicidade e MBA em Marketing pela FGV. Consultora do SEBRAE-RS, integrou a primeira diretoria da APDesign/RS, foi idealizadora do Grupo de Usuários em UI/UX da SUCESU-RS (GUIX) onde atualmente é Diretora de Grupos de Negócios. É também Vice-Presidente de Comunicação da Assespro-RS e articulista do Portal da Revista Amanhã — veículo especializado em economia e negócios da região sul.