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A mente como relação: um mergulho mais profundo

Se existe uma revolução silenciosa no estudo da mente nas últimas décadas, ela não veio apenas da neurociência nem da filosofia da consciência. Veio do reconhecimento de que a mente não é algo que ocorre isoladamente dentro do crânio, mas um fenômeno relacional.

Dan Siegel sintetiza isso ao propor que a mente é um processo emergente que regula o fluxo de energia e informação dentro de nós e entre nós. Não se trata apenas de metáfora. Há evidências crescentes de que a qualidade das nossas relações literalmente altera a forma como o cérebro se organiza. Se passamos anos em ambientes de confiança, colaboração e abertura, desenvolvemos redes neurais que favorecem resiliência e criatividade. Se, ao contrário, passamos tempo em contextos de medo, controle e punição, a mente se contrai e o cérebro responde com padrões de defesa e retraimento.

Nas organizações, isso significa que liderança não é apenas gestão de processos, mas arquitetura de contextos mentais coletivos. A forma como líderes conduzem uma reunião, acolhem ou desvalorizam uma ideia, promovem segurança psicológica ou instalam medo, determina não apenas comportamentos momentâneos, mas a própria constituição mental dos indivíduos ao longo do tempo.

Allan Schore amplia essa noção com seus estudos sobre regulação afetiva. Desde a infância, nossa mente se forma em um “campo de regulação mútua”: pais e cuidadores ajustam suas expressões, tons de voz e gestos, ajudando a criança a organizar emoções ainda caóticas. Esse processo não termina na infância. Continuamos, vida afora, a depender dessa regulação interpessoal. Nas empresas, isso significa que líderes funcionam como reguladores emocionais de suas equipes. Em momentos de crise, uma palavra calma pode ser tão determinante quanto uma estratégia robusta. O tom do líder reverbera como um campo de ressonância que organiza ou desorganiza as mentes ao redor.

Seja em um contexto de layoffs, numa fusão organizacional ou na condução de um projeto inovador cheio de incertezas, a capacidade do líder de sustentar afetivamente o grupo é decisiva. Isso não se confunde com paternalismo ou com esconder dificuldades. Trata-se de reconhecer que a mente não é impermeável: ela se regula no encontro.

Evan Thompson, ao articular a mente com a fenomenologia e as tradições contemplativas, reforça a ideia de que não há mente isolada. A mente é sempre encarnada, situada, atravessada por um mundo. Essa visão desloca a liderança de uma perspectiva interna (como gerir “meu time”, “minha empresa”) para uma perspectiva ecológica. Se a mente é inseparável do contexto, não basta cuidar da cultura interna: é preciso olhar para a forma como a organização se relaciona com a sociedade, com o ambiente natural, com seus ecossistemas parceiros. A mente corporativa não é apenas o que acontece entre quatro paredes de um escritório, mas também o que se constrói nas interações com clientes, fornecedores, comunidades e com o planeta.

Esse deslocamento é particularmente relevante diante da crise climática e da pressão social por responsabilidade corporativa. Empresas que tratam a mente como algo interno podem até investir em programas de bem-estar, mas, se sua cadeia de valor destrói ecossistemas ou explora comunidades, há uma incoerência que mina a própria saúde mental organizacional. A mente relacional exige coerência entre dentro e fora.

Richard Davidson traz uma perspectiva prática: se a mente é plástica e relacional, podemos treiná-la. Sua pesquisa mostra que práticas como a meditação não apenas reduzem estresse, mas fortalecem circuitos cerebrais relacionados à compaixão, à atenção e à resiliência. Imagine o impacto de inserir isso em culturas corporativas: ao invés de programas pontuais de “descompressão”, seria possível cultivar uma ecologia mental organizacional na qual líderes e colaboradores aprendem continuamente a regular emoções, sustentar presença e expandir empatia.

Esse é talvez um dos pontos mais desafiadores para lideranças: compreender que a mente não é apenas uma variável individual, mas um campo coletivo que emerge das relações. A produtividade de uma equipe, a capacidade de inovação de uma organização e o nível de engajamento das pessoas não podem ser separados da qualidade desse campo.

Consequências práticas para líderes

Expandir a noção da mente como relação traz algumas consequências práticas diretas para o mundo corporativo:

1. Segurança psicológica como ativo estratégico: Não se trata apenas de “fazer as pessoas se sentirem bem”. Trata-se de criar condições nas quais a mente coletiva pode se expandir, explorando possibilidades sem medo de punição. Isso está diretamente ligado à inovação, à retenção de talentos e à construção de culturas adaptáveis.

2. Feedback como prática de co-regulação: Cada feedback não é apenas um ato de comunicação, mas um processo de regulação mútua. Um feedback dado em tom acusatório ativa o sistema defensivo do outro; um feedback dado com clareza e respeito amplia a capacidade de reflexão e aprendizagem.

3. Rituais organizacionais como dispositivos mentais: Reuniões de abertura, check-ins de equipe e momentos de pausa não são apenas protocolos: são práticas que moldam o campo mental coletivo. Líderes conscientes tratam os rituais como oportunidades de cultivar presença, conexão e clareza.

4. Liderança como presença encarnada: Não basta ter discurso. A mente relacional capta o que o corpo comunica: o tom de voz, a postura, a forma como se olha nos olhos. A autenticidade torna-se condição para a eficácia.

5. Organização como mente expandida: Ao reconhecer que a mente se dá também na relação com o mundo, empresas são chamadas a repensar propósito e responsabilidade. Sustentabilidade não é apenas estratégia reputacional, mas parte constitutiva da saúde mental coletiva.

Entre o individual e o coletivo

O que emerge de toda essa reflexão é que não podemos mais pensar a mente como um objeto isolado. Cada decisão de liderança é, ao mesmo tempo, um ato que reorganiza a mente individual e que reconfigura a mente coletiva. A tensão entre autonomia e interdependência é o terreno onde se joga a liderança contemporânea.

Chalmers e Nagel nos lembram de que a subjetividade é irredutível. Dennett, Damasio e Kahneman nos mostram que a mente é funcional, adaptável, atravessada por emoções e vieses. Kandel e Gazzaniga nos falam de plasticidade e narrativas. Siegel, Schore, Thompson e Davidson abrem o horizonte da relação, da co-regulação, da mente encarnada. Kurzweil e Bostrom nos projetam para o desafio das inteligências artificiais que já começam a simular funções mentais humanas.

Para líderes, o convite não é encontrar uma resposta única, mas cultivar a capacidade de navegar entre perspectivas. Entender que cada visão ilumina um aspecto, e que nenhuma delas dá conta do todo.

Conclusão

A mente é mistério, função, relação, narrativa, plasticidade, risco e possibilidade. É a condição da liderança e também seu maior desafio. Em um mundo onde as pressões aumentam e as fronteiras entre humano e máquina se tornam mais difusas, o papel dos líderes talvez seja justamente sustentar esse espaço de abertura: não reduzir a mente a um objeto, mas tratá-la como campo vivo, dinâmico, em constante transformação.

Ao reconhecer que liderar é, em última instância, cuidar da mente em relação, talvez possamos abrir caminho para organizações mais humanas, mais conscientes e, paradoxalmente, mais eficazes.

Referências Bibliográficas:

CHALMERS, David J. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. Oxford: Oxford University Press, 1996.

DAMASIO, Antonio. Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. New York: Pantheon, 2010.

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DAVIDSON, Richard; BEGLEY, Sharon. The Emotional Life of Your Brain. New York: Hudson Street Press, 2012.

DENNETT, Daniel C. From Bacteria to Bach and Back: The Evolution of Minds. New York: W. W. Norton, 2017.

GAZZANIGA, Michael. Who’s in Charge? Free Will and the Science of the Brain. New York: HarperCollins, 2011.

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KANDEL, Eric. In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind. New York: W. W. Norton, 2006.

KURZWEIL, Ray. How to Create a Mind: The Secret of Human Thought Revealed. New York: Viking, 2012.

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SIEGEL, Daniel J. Mindsight: The New Science of Personal Transformation. New York: Bantam, 2010.

SIEGEL, Daniel J. The Developing Mind: How Relationships and the Brain Interact to Shape Who We Are. 2. ed. New York: Guilford Press, 2012.

SCHORE, Allan N. Affect Regulation and the Repair of the Self. New York: W. W. Norton, 2003.

THOMPSON, Evan. Mind in Life: Biology, Phenomenology, and the Sciences of Mind. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

THOMPSON, Evan. Waking, Dreaming, Being: Self and Consciousness in Neuroscience, Meditation, and Philosophy. New York: Columbia University Press, 2014.

BOSTROM, Nick. Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies. Oxford: Oxford University Press, 2014.

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Leonardo Comparsi

Leonardo Comparsi é engenheiro eletricista com mestrado em engenharia de produção, especialização em negócios e também em gerenciamento de projetos, e mais de 30 anos de experiência como executivo e consultor em inovação estratégica e transformação organizacional. Atuou em posições globais de liderança, como Diretor de Sistemas de Gestão na América do Norte e Head de Inovação Global na Gerdau, onde estruturou programas que conectam estratégia, cultura e execução, com resultados muito significativos. Nos últimos anos, tem se dedicado a iniciativas que unem inovação, bem-estar e desenvolvimento humano. Lidera projetos que integram consciência, desenvolvimento vertical e impacto regenerativo, além de hubs de inovação, mentorias executivas e consultoria. Com formação complementar em escolas como Darden (UVA), MIT, Stanford, University of Minnesota e Michigan State University, Leonardo combina razão e intuição para construir pontes entre resultados e propósito — acreditando que a verdadeira transformação acontece no espaço entre ideias e pessoas.