O desafio da liderança na Era da Complexidade
Nosso mundo está em constante transformação, e a complexidade é a nova normalidade. Mudanças climáticas, desigualdades sociais, avanços tecnológicos e crises de saúde mental são apenas alguns dos desafios que pressionam empresas e líderes a responderem com agilidade, sensibilidade e responsabilidade. Mas, como fazer isso em um cenário onde as soluções do passado já não funcionam?
Por que a complexidade exige uma nova liderança?
Dave Snowden, criador do Cynefin Framework, nos lembra que na complexidade as relações de causa e efeito só são compreendidas retrospectivamente. Não existem respostas certas antecipadamente; o caminho é a experimentação: sondar, sentir e responder. Em vez de controle, precisamos criar espaço para a emergência e aprender com os sinais que surgem. Sonja Blignaut, especialista em complexidade aplicada, reforça que o papel da liderança não é prever e controlar, mas criar coerência em meio ao caos. Isso exige presença, escuta ativa, abertura ao inesperado e coragem para agir mesmo sem certezas. Afinal, talvez o futuro não seja uma meta a ser alcançada, mas um padrão ao qual devemos nos sintonizar. A nova liderança não se sente motivada por metas, por mais “SMART” que sejam. Elas parecem estreitas demais. Fixas demais. E desconectadas demais do terreno vivo e em constante mudança que precisamos aprender a navegar. Em vez de correr atrás de clareza, a nova liderança precisa aprender a sintonizar, a perceber. E mover-se com o que está emergindo, em vez de forçar o que “deveria” ser.
As abordagens tradicionais do século XX, focadas em controle hierárquico, metas lineares e eficiência operacional, não dão conta dessa realidade. Um exemplo claro é o sistema de desdobramento de metas (cascading goals), que ignora o contexto local e a inteligência coletiva. Isso gera ambientes fragmentados, pouca colaboração e grande resistência à inovação. O resultado? Estagnação, colaboradores desmotivados e potencial humano desperdiçado.
A vaidade e o orgulho que por vezes observamos em grandes lideranças nacionais — aquelas que evitam o diálogo autêntico, reagem com sarcasmo diante de críticas construtivas ou disputam espaços de visibilidade mais pela aparência do que pela substância — são expressões visíveis de lógicas de ação centradas na autoproteção e na dificuldade de reconhecer falhas como parte natural do processo de aprendizagem e evolução. Esses comportamentos refletem líderes que operam predominantemente a partir de uma lógica egocêntrica, onde a liderança é regida por impulsos de sobrevivência pessoal, dominância e manipulação. Eles enxergam o mundo como um jogo de poder onde o valor das relações depende de sua utilidade imediata. A vaidade se expressa como autoproclamação constante e desvalorização do outro, enquanto o orgulho é uma armadura emocional que impede qualquer vulnerabilidade — pois admitir um erro seria admitir fraqueza. Outros têm forte dependência da aprovação externa, evitando o diálogo quando este ameaça desestabilizar o status ou o “bom tom” do grupo. Recebem críticas como ataques pessoais, e o sarcasmo pode surgir como estratégia de autodefesa social — mantendo as aparências enquanto se evita o confronto verdadeiro. Ou ainda, podem se ancorar no domínio técnico e na precisão dos argumentos, crendo que sua visão é a mais correta — ou até a única válida — e que o reconhecimento deveria vir da solidez lógica de suas ideias. Há frequentemente um desprezo implícito por saberes diferentes do seu campo de especialidade, o que pode torná-lo reativo a críticas e cego a dimensões relacionais e sistêmicas. A vaidade aparece na forma de superioridade intelectual e rigidez conceitual.
São comportamentos que têm um ponto em comum: a dificuldade de sustentar o desconforto da vulnerabilidade, da dúvida e do confronto consigo mesmo. Isso limita a capacidade de escuta genuína, de construção coletiva e de reconhecimento da interdependência — habilidades indispensáveis em tempos de complexidade.
Avançar exige um descentramento do ego e uma disposição real para aprender com o outro, com o contexto e com os próprios limites. E esse é justamente o tipo de liderança que o momento exige: uma liderança menos autocentrada e mais conectada ao bem comum, capaz de reconhecer que os desafios de hoje não serão vencidos com as certezas de ontem, mas com a coragem de mudar por dentro. Líderes capazes de sustentar paradoxos, ouvir genuinamente mesmo quando criticados, e responder de forma criativa e coesa a múltiplas demandas complexas. Precisamos de quem consiga manter a calma diante da incerteza, criar alianças improváveis e liderar processos transformadores sem garantias de sucesso imediato. Em vez de proteger o ego, esses líderes escolhem servir a um bem maior, agindo com coragem moral, clareza de intenção e integridade profunda.
A liderança como jardinagem e a estética da consciência
Em um ambiente complexo, a metáfora da engenharia, com seus planos rígidos e previsibilidade, é insuficiente. É mais produtivo pensar na liderança como jardinagem. O líder-jardineiro não controla o crescimento de cada planta, mas cria as condições ideais para que elas floresçam: prepara o solo (cultura organizacional), rega (comunicação e feedback), poda (elimina o que não serve) e protege (resolve conflitos). A incerteza não é um obstáculo, mas parte do ciclo natural, exigindo paciência, observação e adaptação constante. O desenvolvimento interior, nesse sentido, equipa o líder com a humildade de saber que não detém todas as respostas e a sabedoria para nutrir o ecossistema da organização.
Para além da funcionalidade e da ética, a liderança na complexidade pode ser vista sob uma ótica estética. Liderar com “presença, escuta ativa, abertura ao inesperado e coragem para agir mesmo sem certezas” não é apenas eficaz, mas também belo. Há uma beleza na capacidade de criar coerência em meio ao caos, de sustentar paradoxos e de ouvir com genuína abertura mesmo quando criticado. Essa “estética” da liderança inspira confiança e engajamento, transformando o ambiente de trabalho em um espaço mais humano e vibrante. O desenvolvimento interior, ao refinar a percepção e a sensibilidade do líder, aprimora essa “arte” de liderar.
O desenvolvimento interior: Não é “Soft”, é “Self”
Para transformar esse cenário, precisamos ir além do desenvolvimento de competências técnicas. O foco precisa estar no desenvolvimento interior: autoconsciência, empatia, comunicação, capacidade de escuta, regulação emocional e pensamento sistêmico. Essas habilidades são interligadas e se reforçam mutuamente. Não se desenvolve uma sem tocar em outras.
Desenvolver essas habilidades de forma isolada pode ser ineficaz; é preciso uma abordagem holística que considere a interdependência entre elas. Programas pontuais que abordam temas como inteligência emocional ou comunicação eficaz, muitas vezes falham em produzir transformações duradouras se forem desconectados e sem uma visão sistêmica. Esses temas precisam ser trabalhados de forma integrada, com espaços estruturados que combinem momentos individuais de reflexão e prática com experiências relacionais significativas.
Aqui entra o conceito de desenvolvimento vertical, de Robert Kegan e Bill Torbert, que destaca a evolução da forma como percebemos a nós mesmos, os outros e o mundo. Essa evolução não é linear nem automática; ela requer experiências transformadoras, feedback, apoio e tempo para integração. Como mostra a experiência de Samantha Kropf, do podcast The Developmental, é através da repetição intencional, do desconforto consciente e do apoio mútuo em ambientes seguros que o crescimento vertical acontece de forma real e sustentável.
Os Pilares de um Programa de Desenvolvimento Vertical
Para fomentar a maturidade de líderes de forma contínua e profunda, as competências podem ser integradas a um programa estruturado com base nos princípios do desenvolvimento vertical. Esse tipo de programa não se limita à transmissão de conhecimento técnico (desenvolvimento horizontal), mas promove mudanças qualitativas na forma como líderes interpretam a realidade, tomam decisões e se relacionam com o mundo.
Um programa eficaz pode ser estruturado com base em cinco pilares:
1. Ambientes de Apoio com Segurança Psicológica: Espaços seguros para expressão emocional e vulnerabilidade, com grupos de pares e regras de convivência baseadas em empatia.
2. Experiências Desafiadoras e Dilemas Desorientadores: Simulações e projetos em ambientes ambíguos, exposição a feedback desconfortável e assunção de papéis de liderança sem autoridade formal.
3. Tecnologias para Navegação Emocional: Práticas de mindfulness, regulação emocional, diários reflexivos e exploração de paradoxos.
4. Reflexão Crítica Guiada: Fóruns baseados em perguntas catalisadoras, coaching com foco em “Immunity to Change” e análise de dilemas reais.
5. Experimentação Deliberada: Design de experimentos comportamentais, ciclos de tentativa-reflexão-ajuste e compartilhamento de aprendizados em comunidades de prática.
Com essa abordagem, não se treinam apenas habilidades; cultiva-se uma nova forma de ser, pensar e liderar.
Validando a Abordagem
Evidentemente que é bastante comum ouvirmos críticas quanto a estas abordagens no meio empresarial. Desde os que acham que se trata de um tema circunscrito a pessoas privilegiadas até os que o identificam com movimentos new-age. Vejamos algumas destas críticas:
Crítica: “É muito soft e intangível para resultados concretos.”
Embora se concentre em habilidades “soft”, o desenvolvimento interior gera ganhos tangíveis. Líderes mais conscientes tomam decisões melhores. Ambientes mais saudáveis reduzem o burnout e o turnover. Equipes mais criativas impulsionam a inovação. Além disso, a reputação e o alinhamento com os princípios ESG (Ambiental, Social e Governança) são fortalecidos, impactando diretamente a performance econômica e a responsabilidade social. Empresas como Google, Ericsson e Novartis já incorporaram estas habilidades em suas práticas, comprovando seus benefícios concretos.
Crítica: “Foca demais no indivíduo e ignora as falhas sistêmicas da organização.”
A abordagem não é puramente individual, mas integrada e holística. O desenvolvimento interior catalisa a transformação sistêmica. Líderes com pensamento sistêmico são mais capazes de identificar e atuar sobre falhas estruturais. A resistência à inovação e a fragmentação departamental são resultados de modelos mentais ultrapassados. Ao desenvolver líderes capazes de “sustentar paradoxos” e “responder de forma criativa e coesa”, a organização ganha capacidade de “orquestrar mudanças profundas”. Mas ainda assim, é possível e saudável também trabalhar no modelo de operação, gestão e liderança, assim como na cultura organizacional, de forma a garantir uma ambiente propício à mudança ao invés de puramente apoiar na liderança o desafio da transformação.
Crítica: “O desenvolvimento vertical é elitista e demorado, não escalável.”
Embora o desenvolvimento vertical exija tempo, o texto propõe uma estrutura escalável com os cinco pilares. A “repetição intencional, o desconforto consciente e o apoio mútuo em ambientes seguros” permitem a escalabilidade. Iniciativas como a Transition Makers Toolbox na Holanda e a University for Inner Development demonstram esforços para tornar esses conceitos acessíveis e aplicáveis em diversos setores.
Benefícios Concretos e o Futuro que Começa de Dentro
A aplicação destas habilidades traz ganhos tangíveis para as organizações:
● Engajamento: Funcionários mais conectados ao propósito e cultura da empresa.
● Redução de burnout e turnover: Ambientes mais saudáveis e humanos.
● Inovação: Equipes mais criativas e abertas à experimentação.
● Tomada de decisão: Lideranças mais conscientes e alinhadas com valores.
● Reputação e ESG: Alinhamento entre performance econômica, impacto social e responsabilidade ambiental.
Não é mais suficiente treinar líderes para serem apenas eficazes. Precisamos cultivá-los para serem humanos integrais, conscientes, capazes de navegar na complexidade com sabedoria e coragem.
Um movimento recente, mas que cresce de forma exponencial nos últimos 4 anos, trazendo toda esta abordagem à tona é o Inner Development Goals. Ele foi criado para ajudar a atender à nossa necessidade urgente de aumentar nossas capacidades coletivas para enfrentar e lidar de forma eficaz com desafios complexos, oferecendo uma resposta concreta, estruturada e escalável para essa transformação. Nos próximos artigos iremos abordar mais sobre o Inner Development Goals, suas dimensões e habilidades.
Liderar de dentro para fora não é uma opção: é um imperativo para o futuro das organizações.
Referências:
- Inner Development Goals: https://innerdevelopmentgoals.org/
- Transition Makers Toolbox: https://transitionmakers.nl/
- University Inner Development: https://universityinnerdevelopment.org/
- Kegan, R. & Lahey, L. L. (2009). Immunity to Change
- Torbert, B. (2004). Action Inquiry
- Snowden, D. & Boone, M. (2007). A Leader’s Framework for Decision Making. Harvard Business Review
- Blignaut, S. (2022). Artigos e reflexões em: https://sonjablignaut.medium.com/
- The Developmental Podcast: https://verticaldevelopment.education/podcast