Tem coisas que simplesmente não saem da cabeça da gente. A história de Hank Ameen é uma delas.
Aos 92 anos, ele segue trabalhando na Disney, onde está há mais de seis décadas. Começou em 1958 pilotando um barco no Jungle Cruise. Depois, virou bombeiro, cuidou dos fogos, participou dos bastidores dos shows, caminhou entre os visitantes como quem caminha por casa. Ninguém o obrigou a ficar. Ninguém o amarrou ao crachá. Quando perguntam por que nunca foi embora, ele responde com uma simplicidade desconcertante: “Porque tenho paixão. Sinto que estou protegendo a magia.”
E é aí que a história pega. Não pela longevidade, nem pela dedicação. Mas pela clareza de sentido. Pela capacidade de permanecer inteiro num ofício. Pela integridade de não se perder de si mesmo em meio ao tempo que passa.
Em um mundo onde tudo gira em torno de transformação digital, inteligência artificial, velocidade, eficiência, reinvenção, essa frase soa como um contraponto quase poético. Não porque desdenha da tecnologia ou da inovação, mas porque lembra que, no centro de tudo isso, ainda existe uma pessoa. Hank não é contra o progresso. Mas ele representa algo que o progresso precisa carregar junto para não se esvaziar: a presença. A escolha de estar. A consciência de participar de algo maior do que si mesmo, mesmo que esse algo seja um pequeno barco conduzido num canal artificial.
Em tempos de tanto ruído, há uma força bruta em gestos simples. Há uma lucidez no caminho longo. Há uma coragem profunda em permanecer.
Enquanto o mundo corporativo se reconstrói a cada trimestre, com novas ferramentas, novos modelos de negócio, novas formas de vender, de medir, de escalar, a figura do Hank permanece ali como uma lembrança discreta, mas insistente. Uma lembrança de que, por trás de cada processo, cada KPI, cada dashboard, cada estratégia sofisticada, existe gente. E é a qualidade dessa presença que ainda determina o que fica e o que se dissolve.
Tomemos como exemplo o universo das vendas em tecnologia, onde tudo parece se mover mais rápido do que a gente consegue acompanhar. Novos ciclos comerciais, novas exigências dos clientes, novos fluxos de decisão, plataformas que prometem escalar o relacionamento com um clique. E tudo isso funciona. Tudo isso ajuda. Mas não substitui. Não substitui a escuta verdadeira. Não substitui a leitura cuidadosa do contexto. Não substitui a construção paciente de confiança.
Vender tecnologia hoje exige uma sofisticação que impressiona. Exige domínio técnico, leitura estratégica, capacidade de análise de dados, articulação com múltiplos stakeholders, navegação em ambientes complexos e multidepartamentais. Não dá mais para confiar apenas na habilidade de comunicar bem ou de gerar empatia. É preciso entender de verdade o problema que se está tentando resolver, e isso pede método, processo, estudo, preparo. Mas quem vive essa rotina na prática sabe que, mesmo com tudo isso na mesa, há um elemento invisível que segue fazendo diferença. E esse elemento é humano.
Ele aparece na forma como se faz uma pergunta. No tempo que se escolhe esperar. Na escolha de não forçar um avanço só para cumprir uma meta. No cuidado com o que se escreve. No silêncio que se respeita. No vínculo que se constrói.
A inteligência artificial vem mudando radicalmente a forma como se trabalha. E esse é um movimento sem volta. Ferramentas que geram propostas comerciais em segundos. Plataformas que analisam sentimento de e-mails. Sistemas que priorizam oportunidades com base em dados históricos e padrões de comportamento. São ganhos reais. São alavancas que aumentam a produtividade, ampliam a visão, reduzem tarefas repetitivas. Seria ingenuidade resistir a isso.
O desafio, no entanto, não é usar ou não usar IA. O verdadeiro desafio está em não perder a alma do ofício enquanto tudo isso é incorporado. Em não terceirizar também a escuta. Em não delegar ao algoritmo a responsabilidade pela construção da relação. Em não abrir mão do cuidado porque agora se pode fazer tudo mais rápido.
Esse talvez seja o ponto mais sensível de todos. A tecnologia nos dá ferramentas poderosas, mas nenhuma ferramenta, por si só, cria significado. Nenhuma estrutura, por mais robusta que seja, sustenta uma relação se o elo humano estiver ausente.
E é por isso que a história do Hank me parece mais atual do que qualquer trend report. Ela não propõe um modelo. Ela não sugere um hack. Ela não oferece uma nova técnica. O que ela oferece é um lembrete. Um lembrete de que a presença ainda é insubstituível. De que o cuidado ainda é revolucionário. De que permanecer inteiro no que se faz, mesmo quando ninguém está vendo, ainda é o que diferencia uma função de um propósito.
E isso não se aplica só a quem vende. Vale para quem atende. Para quem lidera. Para quem escreve. Para quem projeta. Para quem ensina. Para quem constrói, cuida, organiza. Em qualquer profissão que envolva relação, o fator humano segue sendo o ponto de inflexão.
Não importa o quanto os sistemas avancem, ainda seremos nós, com nossas decisões, com nossas falas, com nossos silêncios, que vamos definir o tom. E esse tom é o que constrói cultura. É o que define a experiência de quem está do outro lado. É o que sustenta a confiança ao longo do tempo.
Não estou dizendo que basta ser bem-intencionado. A complexidade do trabalho moderno exige rigor. Exige disciplina. Exige precisão. Mas tudo isso sem alma vira um movimento mecânico. Uma engrenagem que roda, mas não leva ninguém a lugar nenhum.
E talvez por isso a imagem do Hank, andando devagar pelos bastidores da Disney, com a mesma leveza de décadas atrás, seja tão poderosa. Porque ela não fala de produtividade, de performance, de metas ou de inovação. Ela fala de presença. E presença, hoje, é quase um ato de resistência.
Não se trata de romantizar o passado, nem de rejeitar o que vem pela frente. Trata-se de saber o que vale carregar junto. De escolher o que precisa permanecer enquanto o resto muda.
E é nessa escolha que está a chave. Porque, no fim, o que nos torna relevantes não é a velocidade com que nos adaptamos, mas a integridade com que atravessamos as transformações.
Paixão, cuidado, sentido. Essas são as coisas que não podem ser substituídas. Essas são as coisas que merecem ser preservadas. Porque, em algum lugar, todos nós estamos tentando proteger alguma forma de magia.