Entre muitas convicções e poucas certezas, vivemos uma era na qual a informação já não é o que era antes
Como formamos nossas convicções? As respostas variam, mas, em geral, se ancoram na experiência própria ou na aceitação da autoridade.
Percorremos esses dois trajetos paralelamente. E ambos nos levam ao mesmo destino: a certeza de que aquilo que acreditamos é verdade. Porém, em tempos de Big Data e algoritmos “inteligentes”, os fatos já não são mais o que costumavam ser e ter clareza sobre eles se tornou tarefa árdua.
Os estudos sobre a formação de crenças e convicções avançaram, desde o revolucionário artigo sobre dissonância cognitiva, no final dos anos 1950, às reflexões recentes do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman, em seu “Rápido e Devagar, duas formas de pensar”.
Comum a eles, uma conclusão: nossas convicções nos ajudam a navegar, num mundo que exige muito da capacidade de processamento do cérebro. Por meio delas determinamos automaticamente se uma atitude é eticamente correta ou condenável, se uma pessoa é feia ou bonita, se fantasmas existem ou não, se Deus criou o mundo, ou foi o acaso. Elas determinam o que consideramos ser possível e nos dão a medida do impossível.
No livro de cabeceira do 44º presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, Daniel Kahneman diz que, ao formarmos uma convicção, ela é armazenada em nosso inconsciente, uma estrutura mental que não se importa com o que é ou não verdade. Apenas armazena o que acreditamos ser um fato. Uma vez armazenados, tais fatos passam a fazer parte de nós. Nossas ações são automatizadas. E a vida segue.
Acreditamos que a placa PARE é verdade. Que ninguém a colocou ali com segundas intenções. E assim não cruzamos as ruas sem frear. Se fossemos refletir a cada esquina sobre “qual o significado dessa placa?” ou se “é verdade essa placa?”, a vida seria muito mais difícil. Essa é uma resposta automática e, similar a ela, há milhares de outras. Trata-se do nosso mindset orgânico melhorando a nossa vida, a partir das nossas convicções. E é por isso que, uma vez formadas, lutamos por elas.
A neurocientista Johanna Jarcho crê ter descoberto as causas orgânicas para o desconforto causado por uma verdade inconveniente.
O córtex cingulado, próximo ao “centro” do cérebro, percebe inconsistências entre realidade e pensamento. A ínsula cerebral é ativada e causa a sensação de mal-estar. Segundo ela, somente a criação ou a substituição de um pensamento pode aplacar esta angústia. E o cérebro está a nosso serviço para evita-la.
É ele, o cérebro, que busca continuamente significado. Tão logo nos chegam novos dados, eles são utilizados para reforçar nossas crenças ou são descartados, se as colocam em risco.
Em busca de provas
Todos nós, nos sentimos desconfortáveis com pensamentos conflituosos, pois eles dificultam a tomada de decisão e, com frequência, levam a incômodos sobre nós mesmos e nossas perspectivas.
Por esse motivo, nossas mentes procuram continuadamente provas que validem nossas convicções. Esse processo, tecnicamente denominada dissonância cognitiva, tem sido estudado mais intensamente, desde o final da década de 1950.
Por trás do aumento de interesse no tema, a possibilidade de expandir a nossa capacidade cognitiva com máquinas e algoritmos capazes de processar uma quantidade imensurável de dados à nossa disposição. Basta que sejam bem cuidados como discutido aqui. Uma matéria prima incrível.
A abundância de informação não é exatamente fato novo. Para quem viveu no século 18, a imprensa de massa; no século seguinte, informações muito além do imaginável, com relatos e ilustrações de acontecimentos e descobertas distantes. Por sua vez, a comunicação no século 20, de base tecnológica, foi transformadora. Rádio, cinema e TV mudaram o mundo.
Mas é a internet (na confluência entre computadores, satélites e aparelhos de telecomunicação) quem mudou o jeito de ver e pensar o mundo, quando propiciou um aumento exponencial do volume de dados em circulação. Dados criados e oferecidos, de forma gratuita, pelos próprios usuários. A cada clique, a cada toque no visor do celular, cada interação com o grupo no Whatsapp ou Facebook, deixamos um rastro de informações.
Um levantamento recente, Data Never Sleeps, pontuou que 2.5 quintilhões de bytes são criados e disponibilizados na internet, todos os dias. A estimativa abrange tanto a memória ocupada nos grandes sites de armazenamento, quanto a crescente produção de conteúdo, nas mais diversas formas e espaços virtuais.
Em cada MINUTO de 2018 foram realizadas 3.877 milhões de pesquisas no Google, 49,3 mil fotos foram publicadas no Instagram, 473 mil tweetadas correram o feed da humanidade e 750 mil músicas foram tocadas no spotify. Os números não param de crescer, assim como a população na internet, que atingiu os 3,8 bilhões de pessoas.
O sonho que se sonha junto
Se estamos no limite da nossa capacidade cognitiva e temos tanto “conhecimento” a nosso dispor, por que não voltar a sonhar com seres humanos super sapiens? Um sonho antigo que já sonhamos juntos tantas vezes, desde os deuses e mitos da Grécia Antiga, e que agora pode se tornar realidade. E melhor, agora sabemos como!
Algoritmos inteligentes. Esse é o caminho para a famigerada Inteligência Artificial. Computadores e códigos mimetizando a nossa criatividade, a fim de especular sobre os fatos da ciência e da vida quotidiana. Ágeis e hábeis para elaborar e investigar hipóteses, sem se restringir aos dados objetivos, tal como fazemos, mas numa velocidade muito superior.
Os avanços poderiam ser tão rápidos que o primeiro humano “amortal”, termo cunhado pelo best seller Yuval Harari, eventualmente, já pode estar entre nós.
À frente dessa corrida, as Bigtechs. Facebook, Amazon, Apple, Alphabet, Microsoft sabem o nosso nome, gênero, aniversário, celular, email, localização, estado civil, trabalho, nível de escolaridade, endereço físico, endereço IP, o nome e endereço de seus amigos, os eventos que você participa, quando ficamos doentes ou estamos tristes, o conteúdo das mensagens compartilhadas e essa lista é interminável.
Na internet, manuais, sites e cursos vangloriam-se de suas técnicas para ludibriar as pessoas. Veja aqui, por exemplo, dicas sobre como persuadir o cliente, com técnicas elaboradas de psicologia cognitiva. Ou entre aqui para vender seus dados pessoais. Ou aqui, para comprar os dados de milhões.
O uso malicioso é sucessivo e crescente, conforme mostra uma série de estudos de caso divulgados pelo The Computational Propaganda Project, vinculado à Universidade de Oxford. Com foco na manipulação política, os estudos mostraram que 45% das contas mais ativas de Twitter, na Rússia, eram bots (perfis falsos automatizados para distribuir qualquer tipo de informação). Eleitores de Taiwan foram bombardeados com propaganda chinesa, também via perfis falsos. O estudo também avaliou o Brasil, entre os 9 países.
A conclusão do professor de Estudos da Internet em Oxford, Philip Howard, é perturbadora: “as mentiras, o lixo e a desinformação estão amplamente disseminados de forma disfarçada na propaganda e são apoiados pelos algoritmos do Facebook e do Twitter”. O que também não é novidade.
O fato novo é a dúvida levantada pela ciência, sobre a nossa capacidade cerebral de compreender a realidade, mesmo se os dados forem bem cuidados e chegarem até nós de forma isenta. Ainda assim, estaremos condicionados às nossas crenças, pois são elas que nos dão o conforto que não queremos perder.
E é sob essas convicções, ora mais viciadas, ora menos, ora mais preconceituosas, ora menos, ora mais justas, ora menos que estão sendo desenvolvidos os algoritmos que mimetizarão a nossa “inteligência”.
Se nosso cérebro automatiza o processo de tomada de decisão com base em nossas crenças que, por sua vez, são formadas a partir da nossa experiência com os dados; que decisões são essas que estamos tomando? E que inteligência é essa que está sendo programada ou criada nos algoritmos?
A dor da perda
Não é difícil imaginar o perigo de tudo isso junto e misturado. Pelo menos quatro lados (e não dois) da mesma moeda, já que o número de lados de uma moeda pode ser apenas uma crença.
Por um lado, nossas limitações cognitivas para diferenciar crenças, verdades, fatos e mentiras. Por outro, informações disponíveis para comprovar o que quer que seja. E como se não bastasse, uma super exposição a ideias e sugestões de máquinas e algoritmos desenvolvidos intencionalmente para nos manipular. E por fim, ainda que a manipulação não estivesse entre as intenções dos seus patrocinadores, não seria possível escapar das suas convicções, crenças, vícios e preconceitos etc.
Segundo o pesquisador e colunista da Scientific American, Michael Shermer, a questão mais relevante a esse respeito é que primeiro formamos nossas opiniões e só depois buscamos evidências para sustentá-las. Ele descreve esse processo como belief-dependent realism, em que nossas convicções determinam nossa realidade, e não o contrário.
Não deve ter sido à toa que Stephen Hawking, Elon Musk, entre outros, se manifestaram em cartas abertas a respeito do assunto. Segundo ele, “… não via diferença entre o que pode ser alcançado por um cérebro biológico e por um computador. Em teoria, os computadores poderiam emular a inteligência humana e supera-la”. Se isso será benéfico, não temos como saber. Simplesmente, não sabemos. … “ quando máquinas mimetizarem nossas capacidades cognitivas e forem realmente autônomas para melhorar a si mesmo, espero que estejam com os objetivos alinhados com os nossos…”
Milênios de estudos destinados a entender como formamos nossas convicções. Mais de mil anos sonhando com seres humanos com capacidades cognitivas expandidos por máquinas. Mais de um século de evolução científica em torno do conceito de verdades e fatos científicos. Agora ameaçados pela falta de clareza sobre o que acreditávamos ser singular na humanidade: a “sapiência” ou a “inteligência”.
A dor da perda é indescritível, mas não alarmante. Pois junto dela, está a crença que buscamos incessantemente a nossa sobrevivência. E se é a crença que nos move, lutaremos por ela.
Muito interessante a reflexão! Um problema, dentre vários, é o de que acreditamos que a aplicação de nossas crenças está correto, aí está o nosso histórico evolutivo, para provar a tese. A crença na aplicação de nossas experiências na IA especificamente, é de que o que estamos fazendo está correto. Teoricamente estamos aplicando nosso estoque de conhecimento em algoritmos, empilhados históricamente, para seguir em uma direção segura, mas não necessariamente controlada. E que esta aplicação será benéfica para a humanidade. De acordo com quem? A busca pela competitividade, que permite acesso generalizado ao consumo, nos estimula a criar algoritmos inteligentes que favoreçam e estimulem mais consumo e daí uma corrida se estabele, com uma pseudoconcordância tácita da humanidade que consome. O problema é que o limite vem depois do fato. Não há limites para a IA. O que há é uma grande aventura.
Uau! Que texto belo e delicioso de se ler. Perfeito!